O corpo reage ao coração ou reage à mente?
Estou
tão cansada. Quase não tenho força. Hoje estou naqueles dias em que dá
vontade de dormir e acordar dez anos depois. Você já ouviu falar em sono
reparador? Queria dormir e acordar dez anos mais linda e dez anos mais
burra.
Interessa a você saber que estou apaixonada?
Impressionante
como essa palavra acorda os outros. Eu estou apaixonada, mas não é por
uma pessoa. Estou apaixonada pela lembrança de algo leve, solto e
rápido, como uma bola de gás que escapa da nossa mão e passa a ficar
cada vez menor e mais distante. Estou apaixonada pelo impacto da vida,
por um tiro certeiro e bem mirado, pelo arrebatamento provocado pelo
descuido das minhas defesas. Quem está no comando dentro de nós? Andei
flertando com o perigo e no entanto o perigo estava dentro de mim,
dentro desse coração que empacou nos 15 anos, aquela época em que eu era
uma velha e acreditava no amor. Toda mulher romântica é uma idosa. Não
acredito que eu tenha caído nessa cilada, me apaixonar por uma situação.
Por que não estou apaixonada por alguém, estou apaixonada por algo.
Algo completamente inatingível. Estou apaixonada por marcar encontros,
por receber mensagens safadas, emails, por estacionar olhando pros
lados, temendo ser reconhecida. Apaixonada por entrar no apartamento de
um estranho, por tirar a roupa, por gozar com um estranho. Apaixonada
por aquilo que inspira os filmes B e os romances vendidos em banca. Quem
está no comando, me diga? É claro que ele tem rosto, nome e sobrenome.
Mas isolado, longe do cenário, ele não me comove. Ele me comove
acionando em mim a outra, aquela que só deixo sair da casca de vez em
quando. Ele é o xerife que dá liberdade condicional ao meu lado
fora-da-lei. Se o xerife desiste da brincadeira, ela precisa voltar pra
sua prisão domiciliar. Não me venha falar de outros namorados, não me
interessa uma transferência imediata, seria simplista demais. Quero o
circo todo a que tenho direito: sedução, fantasia, tempo. Quero um
romance longo, quero intimidade. Fazer cena de ciúme, terminar, voltar,
amar, brigar de novo, telefonar, pedir desculpas, retornar. Amantes bem
comportadas são um tédio. Se eu estivesse no comando, pinçaria do meu
caderninha meia dúzia de frases que liquidariam a questão. "Foi bom
enquanto durou". "O destino sabe o que faz". "Tudo tem seu preço". "O
show deve continuar". Este tipo de clichê. Mas quem está no comando é
ela, a que não quer voltar pra cela. Rebelião no presídio feminino: ela
fugiu do meu controle. Ela é romântica como uma adolescente. Visceral.
Caótica. Ela chora como uma menininha. Cria diálogos tão convincentes
durante suas madrugadas insones que chega a acreditar que eles
aconteceram. Viajandona. Doce. Áspera. Virginal. Ela me enlouquece. Ela
determina a hora de voltar pra casa, e eu aguardo por ela com uma
ansiedade quase sexual. Quem está apaixonada? Ela por ele? Eu por ela?
Ou tudo não passa de um sentimento solto, sem dono, caçoando de todos
nós?
(Martha Medeiros)
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